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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O homem que sorri


Quando eu tinha oito anos, meu pai foi diagnosticado com esquizofrenia. Eu passei dez anos sem saber o que era uma boa noite de sono. Ele tinha ataques de pânico todas as madrugadas, e dava gritos assustadores. Tínhamos que ficar mudando de casa de semana em semana porque nenhum vizinho nos suportava. E minha mãe também não queria colocá-lo para ser cuidado por outra pessoa. De qualquer forma, ela ainda o amava.

Meu pai nunca tinha dado sinais de algum problema em sua mente. Pelo menos não até aquele acidente na fábrica. Ele trabalhava em uma gigantesca fábrica responsável por criar peças específicas para caminhões. Isso é claro, em uma época que você não tinha um robô para fazer tudo por você. Um pequeno descuido, e pronto. Meu pai se tornara um inválido para sempre.

Eu não me lembro muito bem, mas minha mãe me disse que eu não estranhei quando meu pai recebeu alta e chegou em casa sem um dos braços. Ela nunca me explicou direito, mas por algum motivo legal a empresa se recusou a pagar qualquer tipo de indenização. Então meu pai acabou sem o braço direito, sem dinheiro e sem a capacidade de conseguir outro emprego. É claro que a mente dele não ia aguentar. A depressão o pegou tão forte que dos meus três aos seis anos, eu o vi pouquíssimas vezes. Parentes e amigos iam a nossa casa perguntar se ele tinha morrido devido ao sumiço repentino, e meu pai gritava do quarto que sim. De certa forma, ele realmente tinha morrido.

No dia anterior ao meu aniversário de sete anos eu me lembro de ter feito uma oração. Hoje, me considero ateu, mas aquelas minhas palavras ajoelhado ao pé da cama, ainda estão na minha mente. Como se parte de tudo isso que aconteceu fosse culpa minha. Eu pedi para que Deus consertasse meu pai, para que ele não continuasse tão triste. Fui dormir, e quando me levantei, meu pai estava à mesa preparando o café – algo que ele não havia feito nos últimos três anos.

Com um sorriso esculpido de forma assustadora no rosto, ele contava sobre um sonho que teve. Um homem de aparência estranha, apenas o observava e sorria. E como em um contato mental lhe dizia para fazer um pedido. Minha mãe não entendia do que meu pai estava falando, mas se contentava apenas com o fato de ele ter saído do quarto por um dia. Meu pai gritava, sem ao menos perceber que tinha elevado a voz, que não havia sido um sonho e que o tal homem havia lhe enviado uma carta. Ele mostrou uma das correspondências que haviam chegado naquele dia. Um delas tinha um bilhete que dizia, "Faça um pedido" e uma foto em preto e branco de um homem com aparência andrógena de olhos fechados. Eu não entendia a conversa dos adultos enquanto tomava meu café da manhã, mas ver meu pai sorrir depois de tanto tempo foi o melhor presente que pude receber. Minha mãe fez um bolo, cantamos parabéns e comemos. Eu não tinha muitos amigos, então meus aniversários eram comemorados de forma simples.

Os anos de horror da minha infância começaram no dia seguinte. Acordamos com um grito do meu pai. Levantei assustado da cama e corri para o quarto dos meus pais. Ao chegar lá, me deparei com minha mãe sentada na cama, com um olhar desacreditado e meu pai em pé berrando, "Meu Deus! Meu Deus! O meu braço! O meu braço nasceu de novo! Eu tenho os dois braços novamente!".

Eu apenas permaneci em pé, tentando entender o que acontecia. Por mais que ele insistisse em dizer que seu braço havia crescido novamente, qualquer um podia ver que ele continuava deficiente. Ele corria pela casa agarrando objetos imaginários e gritando para nós, "Você estão vendo isso? Vocês estão vendo isso?". Quando ele tentou conseguir um emprego, mas não pôde porque não tinha um braço, quando ele contou e "mostrou" para os amigos, mas ninguém era capaz de vê-lo, ele surtou de vez.

De um homem deprimido, ele passou a ser um homem agressivo com qualquer um que não acreditasse na sua história do braço imaginário. Isso até nem foi um problema por um bom tempo. Até que ele começou a dizer que escamas começaram a nascer no braço. Ele dizia que cada vez mais perdia o controle daquele braço, como se ele estivesse se controlando sozinho. E assim as noites de sono perdida pelos gritos do meu pai começaram.

Com muito esforço, um médico o examinou e concluiu que ele era esquizofrênico. Desde então minha mãe decidiu que a melhor opção era deixa-lo trancado em um quarto para que ele não representasse um perigo para mim. Você pode achar uma atitude egoísta e absurda, mas na década de oitenta, era assim que pessoas com qualquer tipo de problema mental eram tratadas. Era tudo uma questão de cultura da época.

Os anos se passaram e eu morei em muitos lugares, muitas casas diferentes. Até que fui morar em uma só minha. Com vinte anos de idade eu saí de casa e aluguei um apartamento. O prédio era bastante antigo e o apartamento não era dos melhores, mas para um jovem que quer sair da asa dos pais era o suficiente.

Eu descobri um mundo novo. Estudei, fiz amigos, conheci lugares, e me distanciei cada vez mais dos meus pais. De vez em quando eu ligava para saber como meu pai estava. Ele sempre estava do mesmo jeito, com as mesmas crises noturnas. Minha mãe continuava cansada cuidando dele. E eu continuava muito ocupado com minha própria vida. As únicas vezes que os visitava era para levar dinheiro, as coisas ficaram difíceis desde que meu pai parou de trabalhar.

Mesmo com todos esses acontecimentos na infância, nada pode te preparar para perder alguém que ama. Eu fiquei congelado com o telefone no ouvido. Ter que ouvir aquelas palavras, "Sua mãe faleceu", me atingiu como uma facada no estômago. Como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado. Ter que reconhecer o corpo e vê-la com o rosto completamente retalhado era uma tortura.

A casa não tinha sinais de arrombamento ou qualquer tipo de invasão. A polícia só foi até o local porque os vizinhos ouviram meu pai gritar durante horas, "Eu a matei! Eu a matei!”.

O problema é que por mais que meu pai gritasse que ele a havia matado e que ele deveria ser preso... É que em primeiro lugar, ninguém ouve o protesto de uma pessoa fora de consciência. E em segundo lugar, a perícia constatou que as facadas foram feitas por uma pessoa destra. E como meu pai não tinha o braço direito, ele não podia ter sido o assassino.

Agora, era minha a responsabilidade de cuidar dele. Mas eu não conseguia sequer olha-lo nos olhos. Não importava o que a polícia tinha dito, eu sabia a verdade. Eu sabia quem tinha matado a minha mãe. Meu pai era um homem comum e isso era o que assustava mais. Era como Hannibal Lecter. Ele transparecia a psicopatia com uma calma e tranquilidade indescritível.

- Você sabe que eu não posso ficar com você, não é?

- Claro. E eu também não quero – ele disse com um olhar sério, mas podia ver uma lágrima lutando para não descer.

- Eu vou pagar o melhor asilo daqui da cidade...

- Eu te amo filho – ele me interrompeu. Eu queria dizer que também o amava. Meus lábios tremeram, mas nada saiu.

- Eu vou te levar amanhã. Tudo bem?

- Eu não a matei. Quer dizer, eu a matei, mas... Eu não queria.

- Isso não importa agora pai.

Ele tirou um papel dobrado do bolso e me entregou. O papel cheirava a velhice.

- Eu pedi errado. Eu tentei pedir de novo, mas eu acho que ele só realiza um único desejo. Você precisa consertar isso filho. Eu não me importo se eu tiver que morrer. Contanto que você consiga consertar isso.

Eu abri o papel que ele havia me dado. Era aquela mesma foto, do homem de olhos fechados que ele havia recebido um dia antes de todo esse pesadelo começar. Guardei o papel no bolso sem dar muita atenção e saí.

- Cuidado com o que pede filho – ele disse enquanto eu me afastava.

Um ano se passou desde que minha mãe morreu e meu pai foi morar no asilo. Eu nunca o visitei desde então. E aquela foto ficou guardada com outras coisas velhas também. No meu aniversário de vinte e sete anos, o rosto da minha mãe não saía da mente. Lembrei-me de como ela preparava um bolo de limão, meu favorito. Lembrei-me de como ela fazia questão de me dar os parabéns às 10:27, que era o horário exato em que eu nasci. E como ela era a única que me entendia e como eu a deixei sozinha, com a responsabilidade de cuidar de um louco.

Eu peguei a foto perdida dentro de uma caixa de papelão e a encarei. Me sentia um estúpido por ainda pensar nessa possibilidade. Eu apenas olhei e sussurrei, "Eu quero ver minha mãe de novo". Senti a foto esquentar na minha mão. E aquele homem abriu os olhos e sorriu. Fora o fato de a foto ter se mexido diante dos meus olhos, o sorriso dele era assustador, quase debochado.

Você deve estar se perguntando se os pedidos feitos àquela imagem assustadora se realizam. Sim, se realizam. Eu vi minha mãe novamente. Agora, para onde quer que eu olhe, ela está lá, me observando. Com o rosto completamente retalhando. Caminhando a passos tortos quase convulsionando. Com as gotículas de sangue fresco escorrendo pelo seu tórax. E eu daria qualquer coisa para não vê-la novamente.

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